sábado, 20 de junho de 2009

FALSAS VÍTIMAS & FALSOS PRIVELIGIADOS

Anos de progresso, e de evolução científica não foram suficientes para pôr em causa a categorização como forma de identificação, tanto de coisas como de indivíduos. Esta lógica de categorização, ou classificação está tão presente que se pode mesmo questionar se há alternativa. Apesar disso, a sua capacidade de representação da realidade é sempre questionável, sendo certo que em alguns casos, tais classificações são no mínimo enganadoras.
Para muitos, a descrição da forma do planeta Terra como esférica, trata-se da sua correcta representação, para outros trata-se dum elipsóide, e para os mais eruditos, trata-se dum geóide. No entanto, a verdade inquestionável, é a de que a Terra tem a forma da Terra. Sendo verdade, o que há de errado então com a última definição para que se prefiram as anteriores? Porque não dizemos simplesmente que as coisas são o que são e perdemos tempo com classificações que estão mais ou menos longe da realidade? Talvez porque, apesar de um carro ser realmente um carro, esta resposta parte do princípio de que já se sabe o que é um carro, pois de outra forma a dúvida manter-se-ia.
Normalmente, quando se tem uma dúvida relativamente ao significado duma palavra recorre-se ao dicionário. No entanto, é ilusório pensar-se que o dicionário lhe diz o significado da palavra, o que o dicionário faz, é estabelecer ligações entre a palavra cujo significado procura saber com outras que já sabe. Ao bom estilo duma criptoanálise, mapeando as relações conhecidas dum qualquer dicionário, seria possível de forma sofisticada, saber as relações desconhecidas doutro qualquer dicionário, ou seja, a construção dum dicionário tradutor. Claro que tal não seria uma tarefa linear, bastando considerar as diferenças culturais para se perceber isso.
Se a complexidade anteriormente descrita nos dificulta a tarefa de tradução, ajudam-nos no entanto a concluir que um simples dicionário encerra em si uma ideologia. Os acordos ortográficos são exemplo disso, onde as decisões da inclusão ou exclusão de certas palavras, e por vezes o seu significado, desencadeiam verdadeiros debates políticos. Extrapolando esta ideia, podemos mesmo dizer que cada pessoa vive com o seu próprio dicionário, pois se assim não fosse, campanhas de leitura como o Plano Nacional de Leitura seriam um perfeito disparate. Sabemos que uma pessoa com maior nível de escolaridade, possui um vocabulário maior, mas o que faz duma pessoa letrada ou não, define-se como sendo a utilização do conhecimento que possui, ou seja, no que concerne às palavras, saber a sua inter-relação com outras palavras e incorporar isso numa rede de significados.
Esta rede de significados é o suporte intelectual dum indivíduo, pode não só revelar a sua concepção do que o envolve como também as experiências que viveu. A simples palavra glória, pode ser sentida como uma espécie de conquista militar sofrida, ou em contrapartida, associada aos doces duma tia com o mesmo nome!
Por exemplo, quando se pensa em política pensa-se em esquerda e direita, sendo no entanto, estas mesmas duas palavras controversas, já que para uns A é de esquerda, para outros A é de direita. Por razões de simplicidade vamos considerar apenas diferenças, ou seja, X é mais de direita do que Z.
Por detrás do significado das palavras existem interesses, um exemplo disso é a palavra competitividade. Se tiver com alguma atenção, reparará que esta palavra tende a dissipar-se à medida que um discurso se torna de esquerda. Assim, tal como com outras palavras, poder-se-ia fazer um retrato da respectiva rede de significados de uma qualquer entidade. Suponha-mos que temos dois indivíduos, A e B, e para cada um deles temos a seguinte rede de significados para a palavra competitividade:

Indivíduo A:
  • Empreendedorismo;
  • Riqueza;
  • Produtividade;
  • Competência;
  • Economia.
Indivíduo B:
  • Agressividade;
  • Pobreza;
  • Exploração;
  • Neoliberalismo;
  • Mercado.
Relativamente a estes dois indivíduos, a resposta à pergunta quem está à esquerda de quem, torna-se mais fácil à medida que mais palavras são associadas por esses mesmos indivíduos. Não é por acaso, que os dicionários procuram normalmente traduções “neutras”, sendo neste caso algo do género:
“Competitividade - Qualidade do que é competitivo.”
No fundo é a resposta típica da de um carro é um carro, não deixa de ser verdadeira, mas implica saber o que é um carro!
Mas afinal, qual é o problema do significados não serem uniformes?
O primeiro problema, é o de nem todos se aperceberem disso, achando que o que se escreve vale por si e se percebe por si. O segundo, é o da não uniformidade dos significados ter como causa tratarem-se estes dum campo de batalha.
Se já viu os filmes de Dirty Harry, ou de Mad Max, notou que alguns destes estão comprometidos em descredibilizar a ideia de inimputabilidade das personagens criminosas. Uma das formas que é recorrentemente usada, é a de dar a entender que os crimes não são consequência duma qualquer doença mental, advogada muitas vezes por personagens puramente burocráticas.


Cena final do filme Mad Max

Se o significado das palavras e a sua inter-relação podem parecer uma questão de pormenor, basta estar atento às discussões acesas sobre se A é ou não B para perceber que o não são. A palavra doença tem sido uma das mais debatidas ao longo dos últimos anos, e isso não é por acaso. Por exemplo, a aceitação de uma doença como tal, é a condição necessária para que haja comparticipação do estado no seu tratamento. Os soldados vindos de cenários de guerra, para poderem obter apoios oficiais depararam-se com a necessidade de o justificar. Simples afirmações de que se sentiam perturbados não foram suficientes, tendo sido necessário o catálogo de doença para que a necessidade de tais apoios fosse reconhecida. Desta forma, o chamado Stress Pós traumático é mais uma necessidade do que um facto.
Numa sociedade onde os factos se fazem de argumentos, a expressão, contra factos não há argumentos não poderia estar mais errada. É comum a confusão entre conhecimento e confiança da mesma forma que entre verdade e sobrevivência. Esta confusão tem suporte na suposição da liberdade individual. Existe a convicção universal de que os pensamentos, tal como as acções são escolhas individuais, são fruto de outra coisa que não a necessidade de sobrevivência. Este sentimento, ou melhor, esta necessidade de sobrevivência está presente no indivíduo, na sociedade, nas empresas e nas próprias ideologias. A verdade, ou os factos, não carecem de tal necessidade, na realidade pode-se mesmo dizer que a verdade não é uma sobrevivente, bastando recordar o investimento necessário para se manterem os conhecimentos mais básicos, e o eterno apagar de factos pelo tempo. O Homem, ao contrário dos factos ou da verdade, não possui esta liberdade, e assim sendo, ele é uma espécie de Robocop com um firmware que o impede de abraçar ideias que vão contra as suas cláusulas, quer sejam verdadeiras ou não.
O indivíduo é assim uma instanciação tanto de clausulados biológicos como sociais, clausulados esses que apesar de comuns, se materializam duma forma individual. Apesar dos indivíduos terem aparentemente a capacidade de moldarem a lógica que os interliga, esta capacidade é ilusória, visto em última análise, ser o indivíduo a consequência e não a causa da lógica que o define.
Voltando ao mundo das palavras e dos seus significados, é habitual sentir-se uma falta de congruência, em forma de “por um lado sim, por outro não”. Quando alguém diz que A é B mas A não é C, conclui-se que B não pode ser C. No entanto, sendo a cultura uma arena de interesses, os seus territórios nem sempre se delimitam de forma coerente.
Existem características que tornam um indivíduo mais ou menos apto a atingir os objectivos que lhe estão associados. Sendo o Homem um ser de características intrinsecamente sociais, não é de se estranhar ver este reagir mal à sua segregação. Sendo este receio tão comum, podemos mesmo considerá-lo como um instinto, o instinto da inclusão.
Como exemplo de características que promovem a exclusão, consideremos o Síndrome de Down. Este problema, que afecta profundamente o seu seio familiar, e encontra na sociedade uma enorme discriminação. Sendo assim, quem de alguma forma é vítima dessa discriminação, opta por a minimizar atacando as causas da mesma. De forma previsível, as doenças que de facto se caracterizam como incuráveis, nunca gozaram de grandes privilégios no meio em que se inserem, e ao contrário do caso dos ex-combatentes referidos acima, o termo doença traz mais prejuízos que benefícios.
Como resultado, o Síndrome de Down não é uma doença, como se constata no site da Down's Syndrome Association. No entanto, apesar do Síndrome de Down não ser uma doença continua a ser um síndrome, estando esta última designação associada à de doença em qualquer dicionário actual. Estas incongruências não provam o que é ou deixa de ser, são isso sim, reveladoras dum feudalismo linguístico.



Neste feudalismo, as ideias procuram adeptos, e assim, a simples idade da mãe no momento do parto, associada medicamente com anomalias congénitas, poderia muito bem enquadrar-se numa vantagem evolutiva, conceito muito popular nos dias de hoje. Como argumento de viragem, bastaria notar que essa idade está positivamente correlacionada com o número de filhos já tidos. Assim, após alguma meditação nesta curiosidade, poder-se-ia argumentar que a própria evolução, revela haver alguma vantagem deste síndrome no seio de famílias grandes. Qual? É irrelevante...!
Neste feudalismo linguístico não existem inocentes, sendo contudo, os exemplos anteriores os que mais se lhe assemelham. As empresas e outros organismos, tal como as pessoas, não são de igual forma imunes a esta necessidade.
Actualmente, não existe assunto tão assustador para certas empresas como o aquecimento global. Se para o cidadão comum este assusta pela ausência de medidas, para certas empresas este assusta pela sua exigência.
As empresas possuem os seus próprios instintos de sobrevivência, dos quais, a obtenção de lucro como fonte energética assume um papel primordial. O que motivou as negações da industria do tabaco, não encontra raízes num qualquer mal superior nem mesmo na ignorância. A sua origem, iguala-se à existente em qualquer outro organismo sedento de sobrevivência, sendo por isso, uma constante passível de ser controlada mas nunca erradicada.
Desta forma, as organizações associadas à exploração de energias fósseis, desencadearam já o seu mecanismo de auto defesa contra a ideia do aquecimento global. Num documentário intitulado The Denial Machine da CBC, constata-se como a simples redefinição das palavras, podem alterar o sentimento social relativamente aos temas alvo. Frank Luntz, presente neste documentário, desenvolve de forma muito inteligente, um documento que se viria a tornar a base semântica de George W. Bush relativamente ao tema do aquecimento global. Ele apercebe-se, que os significados associados às palavras são em grande medida construções políticas. Assim, detectando as frases cujos significados se afastassem mais, dos já dominados pelo consenso existente, consegue-se corroer a sua base factual.



Fazer parte duma sociedade pode ser uma bênção ou uma maldição, e isto aplica-se a todas elas. É uma bênção quando se tira o partido mais do que justo dela, é uma maldição, quando é apenas ela a tirar partido, ou seja, como contribuinte (em sentido lato)(1), é o retorno o fiel entre uma ou outra coisa.
Sendo a cultura uma forma de expansão de ideias, esta é um dos principais instrumentos de definição de poder. Qualquer ideia que se queira expansiva, tem de ter um nível considerável de promessa. O modus operandi dum engodo, mede-se pela relação entre a promessa promovida e a da ideia em si. Neste sentido, o engodo pretende fazer confundir conhecimento com confiança, a confiança que dará lugar à ameaça como medida do seu sucesso.
É verdade que as coisas costuma ser um pouco mais complicadas, visto existirem interesses de múltiplas partes cuja permanência se consegue de forma mais subtil, sendo estes raramente independentes. Assim, existem aqueles que acabam por adquirir o estatuto de autoridade, em que, apesar desta não estar necessariamente sustentada por factos ou relações de casualidade, acaba por se tornar na base do senso comum.
As sociedades mudam, e o Homem moderno é o que se entende por moderno. Neste sentido, são muitos os privilégios que se lhe associam. A modernidade trás consigo a promessa da qualidade de vida, da solução de problemas, e o sentimento de dependência associado ao de direito. A sociedade moderna é a sociedade de direito, como se ouve muitas vezes, o direito em si mesmo, o direito à justiça, ou a justiça como o direito à modernidade. Todos estes termos, sendo adjectivos, carecem de significado, significados esses que não têm necessariamente de seguir uma lógica de verdade, muito menos quando esse direito é o que mais serve.
A promessa duma certa modernidade, reside na solução dos problemas que se associam à natureza humana, como se a natureza precisasse do humano para o ser. Na lógica da natureza humana, as patologias tornam-se patológicas, os efeitos transformam-se em causas, e o Homem, a base de trabalho na sua resolução. As lógicas querem-se dominantes, sendo que nesta, a infância, ela própria, acaba por ser uma patologia por força do que passou a ser causa. Esta promessa não requer cura, mas esperança no que se tornou facto consumado.




Notas:
1 - Bens e Contratos - http://librorum-prohibitorum.blogspot.com/2008/03/bens-e-contratos.html